Nestes dias o governo pode cortar salários, despedir trabalhadores, aplicar impostos a pensionistas e não iremos saber de nada. Até pode haver um ataque terrorista à Torre dos Clérigos. Mas nos noticiários televisivos só se falará de futebol.
É uma vergonha. E não é por ser sobre o Benfica. É por ser o que é e como está a ser.
As audiências gostam disto? Uma parte talvez. Mas o jornalismo é isto? É lutar por uns números? É ficar horas a falar do mesmo assunto de forma redundante, sem dizer nada nem acrescentar nada de novo como esta frase? É não informar?
Em primeiro lugar é preciso lembrar aos mais esquecidos uma coisa que está escrita há uns tempos e que, aconteça o que acontecer, é a lei mãe:
Artigo 37.º - Liberdade de expressão e informação
1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
Estas três linhas da Constituição da República Portuguesa deviam estar escritas nas paredes de todas as redacções. A priori não seria necessário porque a priori todos os jornalistas, editores e directores de informação sabem isto de cor.
Mas, infelizmente parece que não. Ou então eu sou muito ignorante e não percebi que ontem e hoje (e talvez amanhã) o mundo parou por causa do futebol e que nada mais aconteceu. Que talvez o assassino de Valongo dos Azeites e a polícia pararam durante a perseguição como acontece quando paramos um vídeo. Que talvez o governo esteja todo no Marquês. Aliás, que o mundo esteja todo no Marquês a comemorar. Que na Crimea está tudo a lançar foguetes por causa do Benfica. Que a tripulação do avião da Malásia está toda numa casa do "Glorioso". Se calhar é isto que está a acontecer e eu não percebi.
Mas como não percebo... e acho que no mundo as notícias se multiplicam... acho melhor continuar a sentir vergonha pelo que fizeram alguns que me fizeram querer ser jornalista.
O jornalismo deve contar o que se passa no mundo e na rua ao lado. Deve ser um espelho do mundo. Mas não ter só um espelho a mostrar uma só coisa. Mostrar e contar o que seja relevante. A vitória do Benfica é notícia, claro. Mas no rectângulo que é Portugal e no globo que é o Mundo, a conquista do campeonato é apenas uma história. Há muitas mais. E se o jornalismo ainda sobrevive é porque conta mais que as vitórias dos clubes.
Sabemos que os números é que pagam os jornais, as televisões, as rádios e a informação que fazem. E sabemos que informação sensacionalista vende mais. Porquê? Porque há anos e anos que muitos se esforçam por fazer o melhor jornalismo amarelo (sensacionalista) - melhor é como quem diz o mais lucrativo. E o público habituou-se e agora espera sempre isso. Mas, numa época de acesso simples à informação, passará o futuro do jornalismo por maratonas sobre os festejos dos adeptos e cenas do género? Esperemos que não. Esperemos que os melhores sejam os que seguem os valores do jornalismo; os que abrem o jornal com uma notícia que seja claramente importante e não com uma notícia que dê mais 2 pontos ao fim do dia na tabela de audiências da GFK.
Os Coldplay cantam - em Fix You (música que fecha o quarto episódio da primeira temporada de Newsroom)- que "if you never try, you'll never know". Se ninguém tentar fazer jornalismo "como deve ser", nunca ninguém vai saber se as audiências sobem ou descem em comparação com o sensacionalismo. Como não fizeram jornalismo na noite da vitória do SLB, os directores de informação não vão saber se apostando num alinhamento diferente do canal vizinho teriam tido mais ou menos audiência. O mal está feito.
Sempre que alguém pensar num alinhamento de um noticiário devia lembrar-se de algumas cenas de The Newsroom - uma série de ficção sobre jornalismo que consegue ser mais real que alguns telejornais. Devia lembrar-se sobretudo do episódio 4, da primeira temporada.